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o chão, acima de tudo, pesa

Essa ação fez parte do trajeto da minha pesquisa de conclusão do curso de Pós-graduação em Artes da cena: direção e atuação no Centro de Artes e Educação Célia Helena, orientada por Joana Dória, dentro do Núcleo de pesquisa de experiências performativas. Convidei um grupo para realizar programas performativos concebidos por mim, interessados em relacionar o reconhecimento das dimensões do próprio corpo, do coletivo e do entorno. Na esperança de que as práticas iniciais alarguem a concepção do próprio programa e do espaço urbano para que, no fim das ocupações, os participantes pudessem elaborar juntos novos programas a serem experimentados pelo grupo. O programa, como descrito por Eleonora Fabião, é um ativador de experiências, um enunciado conceitualmente polido e, talvez, aberto às indefinidas maneiras de realizá-lo. Essa pluralidade de maneiras como cada corpo e seu repertório pode realizar a tarefa em ação é justamente o que garante textura à essa pesquisa. Como estabelecidos nos acordos com o grupo, quem não se sentisse à vontade de realizar algum programa sugerido, poderia também experimentar as qualidades de um observador ativo e como seu olhar externo poderia intervir esteticamente na ação. E como nem todos os participantes poderiam estar presentes todos os dias, a preocupação central dos encontros era fazer com que cada dia valesse por uma unidade de experiência completa por si só, mesmo que todos os dias de ocupação formassem uma constelação sobre o mesmo tema.

primeiros passos 

Dar o primeiro passo, marcado por uma sequência de idas a campo para realizar uma primeira pesquisa particular sobre o espaço, capaz de alimentar a proposta, foi um assombro. A ansiedade não permitiu que eu fosse a um lugar tão próximo de minha casa, e tão reconhecido dentro do meu percurso para realizar as primeiras práticas. Enquanto criava coragem, li as ficções de outras ruas, até resolver pedir ajuda para uma das mulheres mais fortes que eu já conheci. Juntas rascunhamos os primeiros impulsos e as primeiras palavras, como já vínhamos ensaiado ao longo de todas as cenas onde nos abríamos vulneráveis. Muito obrigada, Isa.

convite

Elaborei um chamamento, um jeito de espalhar o tema e esperar que aqueles que se reconhecessem nele respondessem:

O encontro

Combinamos de nos encontrar

porque você me ajudaria

a medir a cidade pela dimensão

do meu corpo, ao dar as mãos

junto comigo, você procurou por vãos

que preenchiam um vão ainda maior

fizemos rascunhos com limites tênues

e na fronteira do meu desenho com o seu,

nos vimos pertencendo

seu desenho camada de chão

sobrepôs-se a minha foto

e virou chamamento

 

Combinamos de nos encontrar num mapa

entre o vinco de suas dobras

e o avesso da costura vermelha que fiz

pra marcar a avenida

 

Combinamos de nos encontrar

sob os nossos olhos-pés

depois de nos perdermos e antes

que seu dissenso tropeçasse

no meu medo de estar

 

Combinamos de nos encontrar

no interior dos vazios,

preenchidos por uma sensação oceânica,

salgada

 

Combinamos de nos encontrar onde

todo e qualquer risco fosse partilhado

e tanto o meu quanto o seu

corpo fossem condição de

desvelar um lugar

 

Combinamos de nos encontrar

no primeiro documento

exposto à céu aberto

e que a escuta do

projeto do outro aprendeu a

tornar visível

 

Combinamos de nos encontrar

na terceira manchete do jornal,

entre o acidente da minha autoescritura

e os depoimentos recolhidos para sua biografia

 

Combinamos de nos encontrar em travessia,

eu te alcançava à rasante

e voltávamos na última palavra

da segunda linha

na segunda estrofe

desse poema 

 

Convite inspirado no poema com mesmo título da poeta Ana Martins Marques. MARQUES, Ana Martins. O livro das semelhanças. 1ª ed. – São Paulo: Companhia das letras, 2015 – p. 21.

 

primeiro programa flutuante

“Contar ao outro os motivos de ter escolhido determinado documento que te representa e mostrar a obra ficcional que trouxe consigo sem comentar nada sobre ela. Ouvir a narrativa do outro e escolher um lugar que a ajude a recontá-la, utilizando a obra ficcional”.

Eu chamei de Poesias geográficas as formas dos registros feitos imediatamente após a experiência. Como transmitir sua experiência em forma estética? “Poesias geográficas” é como Francesco Careri (em Walkscapes) descreve a forma como Hamish Fulton apresenta seus percursos em galeria. Frases e sinais que podem ser interpretados como cartografia, que evocam a sensação dos lugares. Registros com a fugacidade do haicai japonês, breves frases que marcam a instantaneidade da experiência e da percepção do espaço. E que, como o movimento das nuvens (uma vez espelhadas nos vidros do MASP), não deixam rastro no solo, nem no papel. Imagens justapostas de ocorrências observadas no dia a dia. Os eventos da viagem, as sensações, os obstáculos, os perigos, o variar do terreno.


Os passos são como as nuvens. Vêm e vão” (Hamish Fulton).
 

segundo programa flutuante

“Medir o espaço pelas dimensões do seu corpo e dizer a contagem em verso, em voz alta, quando terminar uma sequência”.

programavao

terceiro e quarto
programas flutuantes

“Dançar cedendo à gravidade e marcar seus movimentos com carvão na folha de papel em plano horizontal”.

 

“Dançar atento à capacidade do seu corpo de gerar vãos".

quinto programa flutuante

“A partir de um fato sobre esse lugar, criar uma cena em miniatura em determinado espaço do vão. Colar uma etiqueta com os dados da obra, enfatizando seu valor documental”.

sexto programa flutuante

“Elaborar situações participativas a partir dos documentos sobre o MASP”.

sétimo programa flutuante

“as pessoas vão

mas como

elas foram

sempre fica”

(Rupi Kaur).

O último programa flutuante realizado foi uma sugestão que partiu do próprio grupo convidado, com a intenção de caber nos versos de Rupi Kaur a experiência de refazer algumas performances, dando a chance de quem não esteve presente em dias anteriores de também experimentá-las. As fotos pouco ilustram as reperformances porque eu mesma também estava em ação.

reperformar

Disponha os cartões sobre o chão granular da memória se quiser esboçar um plano de ação em forma de mapa. Se escolher alguns cartões durante a leitura do memorial, sente as substâncias que permearam o processo criativo como um todo. Cada um dos cartões parece uma ilha, ou lugares que flutuam na mesma sensação oceânica da cidade, a cada dia forma-se um novo arranjo. Esse espaço-cronograma deve ser, tal como a cidade nômade, móvel e labiríntico. Junto com o grupo, descobre-se a profundidade desse mar através da experiência. Entre os cartões ou programas flutuantes, existe uma espécie de substância nutritiva, que se agita conforme as correntes dos nossos estados de ânimo. Eles contêm imagens descobertas pelo grupo, referências que permearam o processo de trabalho, descrições de acontecimentos e dos programas dançados, e sugestões de novas tarefas a serem pesquisadas em relação a novos espaços. A experiência de manipular os cartões é também um processo que se faz ao caminhar e parar, há vãos entre eles suficientes para que possam ser reapropriados por quem os coreografa em operação.

capa estudos.jpg

dançar o patrimônio urbano

Quase dois anos depois da experiência, eu publiquei um artigo que reflete sobre um micro acontecimento que vivenciei enquanto realizava os terceiro e quarto programas performativos (02 fev. 2018) só com mulheres parceiras criativas no Vão do Masp. 

agradecimentos

Obrigada Isadora Madsen, por ensaiar tantos novos passos junto comigo.

Obrigada Joana Dória, por transformar o que assustava no meu desejo em pulsão artística.

Obrigada a todos que responderam ao chamamento e estiveram disponíveis para discutir até quando nada acontecia: Ana Paula Carvalho, Debora Rebecchi, Emilie Becker, Fhelipe Chrisostomo, Gabriela Cherubini, Irene Catunda, Isadora Madsen, Luiza Ferreira, Maitê Arouca, Raíra Rosenkjar, Rúbia Vaz e Tatiana Teodoro.

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