trajetória
Veja, eu montei e desmontei esse site não só porque gostaria de ter um portfólio reunindo meus trabalhos, mas também porque existe uma porção de escrituras guardadas que fazem parte estruturante dos trabalhos que já conduzi, e gostaria que fossem lidas em sua integralidade. Tornando minha página uma mistura entre portfólio e blog, e exigindo um tempo mais dilatado de experiência.
Durante o curso de Arquitetura e Urbanismo (Unicamp, 2014), comecei a estudar teatro à medida que compreendia minha mão como extensão da minha memória para escrever, desenhar, esculpir em maquete e sentia ignorada a importância dessa dimensão do corpo em disciplinas que ensinavam os alunos a projetar. Tracei, então, um plano a longuíssimo prazo que revelo para poucos: o de embarcar numa travessia que me colocasse em contato direto com meu corpo e outros dançantes, a fim de acumular bagagem suficiente para uma dia voltar a dar aulas para arquitetura e ensinar projeto pela escala dos movimentos.
Me mudei com a minha prancheta de Campinas para São Paulo para estudar cenografia e figurino na SP Escola de Teatro (2016), onde aprenderia a dimensionar os desejos do meu corpo no espaço. Corri pelas margens e, a partir dos encontros com o que se produzia na cena teatral, deparei-me com uma cenografia que se fazia em ação. Uma cenografia tão ampla quanto se pode imaginar, capaz de abarcar todas as áreas, provocando o corpo a criar novas subjetividades em jogo, sendo por inteira indissociável de dramaturgias do movimento.
Descobri o campo do teatro documentário em uma experiência conduzida por Marcelo Soler no cemitério da Vila Mariana, quando percebi que o gesto que se faz de mais potente em cena sempre é resultado de decidir correr riscos juntos. Foi Soler que me inspirou a dar sequência a uma pesquisa que assume o corpo como local de memória e compreende o teatro como forma de ação cultural e artística.
Durante o curso de pós-graduação em Artes da Cena no Célia Helena (2018), dancei com Jussara Miller e descobri um corpo que tem sede pela construção de repertórios em estado latente e o impulso de procurar por palavras à flor da pele. Com Janaina Leite, reconheci a potencialidade universalizante do trabalho autobiográfico e como cada um pode ocupar igualmente a cena pela capacidade de urdir. Durante o meu trabalho de conclusão, investiguei os territórios do Vão Livre do MASP e sigo carregando grande parte dessa ocupação em mim.
Em 2019, ingressei no mestrado do programa de pós-graduação em Artes da Cena, da Unicamp. Logo me inscrevi na disciplina de desmontagem cênica por onde a orientação de Ana Cristina Colla e Raquel Scotti Hirson (Lume Teatro) me conduzia a revistar minhas memórias artístico-acadêmicas, de modo a encará-las como vetores que me conduziriam ao meu projeto de pós-graduação e que serviram, intimamente, de ferramenta para elaborar meu retorno à Unicamp, passados cinco anos desde a minha formação acadêmica. A desmontagem me colocou, mais do que nunca, diante das minhas tomadas de decisão e dos meus interesses metodológicos.
Em 2021, eu publiquei o artigo Dançar o Patrimônio Urbano na Revista Brasileira Estudos da Presença, no qual desenvolvi temas caros para mim, como o alargamento da discussão da identidade ameaçada do Patrimônio Urbano a partir das artes da presença; e a genealogia de uma virada etnográfica na história da arte que contribuiu para compreensão de um fazer artístico fundado sobre o mundo sensível e situado em relação ao seu entorno.
Em julho de 2022, depois de testemunhar várias estratégias para seguirmos criando juntos, apesar do isolamento da pandemia da Covid-19, eu finalmente defendi o mestrado. Um percurso orientado e mobilizado pelas insurgências de Ana Terra, com quem tive a sorte de dividir propostas em sala de aula. Reuni um pequeno grupo de artistas, ainda usando máscaras, no entorno do Centro de Convivência Cultural de Campinas em reforma, para experimentarmos gestos inspirados nas operações do livro A cidade sitiada de Clarice Lispector, que ao mesmo tempo alterassem o estado do texto literário. Sugerindo aos parceiros maneiras de fazer leituras e tensionando as ações claricianas com a exterioridade em atos de teoria.
Cada platô de parágrafo que acrescento nesse texto sobre minha trajetória é formado também pelo impulso que requer saltar entre eles. Entre agosto de 2023 e o final de 2024, tive a oportunidade de dar aulas para graduação de Artes Visuais da Univap, em São José dos Campos - cidade onde cresci. Foram as chances que Ana Terra me deu que plantaram as primeiras questões sobre a minha própria prática pedagógica. No primeiro semestre, eu corri contra o tempo afobada, tentando provar o que eu sabia. No segundo semestre, a leitura de Leda Martins me ajudou a planejar um projeto em que viver o tempo espiralar abrisse espaço para que as invenções dos alunos decantassem em elaboração. Reorientei minhas prioridades como artista conectora e decidi mergulhar na qualidade da experiência ficcional como forma de investigação. Como ponto de partida das disciplinas que ofereci, as leituras de romances e peças viraram cama estrutural de eterno retorno. Para discutir a devoração, na disciplina de Arte Brasileira, lemos A paixão segundo GH; para nos aproximarmos das ambientações cenográficas de Gordon Craig, fizemos uma leitura de mesa de Hamlet; para discutirmos um corpo impossível e modelarmos as substituições das nossas cabeças, lemos A metamorfose; para compreender nossas próprias medidas em relação à cidade, lemos As cidades invisíveis. Então, o tempo produtivo da aula foi substituído pelo silêncio de leitores concentrados, que se apropriaram de vocabulários plásticos-teóricos capazes de acionar suas próprias criações. A interrupção desse meu trabalho foi abrupta e violenta, mas tive tempo de me despedir dos alunos que de fato escolheram por essa postura de leitores de mundo, e saio cheia de questões sobre minha prática como educadora. É com essas tantas questões que me situo integralmente em estado de pesquisa para a todo instante reinventar as palavras luminescente que eu escolhi para os meus ensaios.