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Esse é um recorte de um dos momentos da minha pesquisa de mestrado que estou abrindo. Projeto de pesquisa que, desde o início, se propõe uma investigação performativa dos territórios de memória do Centro de Convivência Cultural de Campinas (CCC) – patrimônio urbano de arquitetura brutalista tombado no bairro do Cambuí e projetado pelo arquiteto Fábio Penteado. Diante do frágil reconhecimento do patrimônio urbano como pertencente à malha viva da cidade, e a atual situação de abandono e reforma do CCC, essa pesquisa se propõe a investigar a relação entre esse monumento e o imaginário coletivo; as contradições latentes na implantação histórica desse projeto; e a possibilidade de atualizar a situação do CCC criando novas perspectivas para a multidão capaz de ocupá-lo.

Comecei a pesquisa com a intenção de convidar um grupo para ir até lá e experimentar programas performativos no espaço da praça pública – enunciados conceitualmente polidos, propulsores e norteadores da experiência, tal como descritos por Eleonora Fabião. Com a intenção de analisar as possibilidades desse dispositivo relacional em se aproximar do próprio movimento de forças da cidade, reprogramando funções e ludicidades que digam respeito a memória desse lugar e entregando ferramentas operacionais aos participantes para o reconhecimento do próprio corpo e de suas relações em devir com o patrimônio urbano.

 

Porém, diante da impossibilidade de ir a campo devido à pandemia da Covid-19, acabei me aproximando da leitura de romances que me atingiam corporalmente, como as obras de Clarice Lispector, para pensar como programas performativos poderiam surgir dessas escrituras ficcionais e ganhar diferentes suportes em forma de instruções ou roteiros de performances (material plástico-literário) a serem realizadas pelo leitor em seu próprio tempo no complexo patrimonial. Afetada pela leitura de A cidade sitiada (1949), terceiro romance de Clarice Lispector, a pesquisa explora a possibilidade de que programas performativos possam surgir de escrituras ficcionais que ocupam-se do sentido corpóreo da palavras.

Comecei a ler o CCC a partir de lentes contaminadas pelas operações de Clarice. Os romances polinizam minhas referências bibliográficas não apenas como inspiração, mas como saber praticado, mobilizando o tema e engendrando a forma da pesquisa acadêmica. Encaro A cidade sitiada não somente como um livro que ocupa-se de um vocabulário urbano, mas como gérmen de um tipo de olhar que dissolve a relação hierárquica entre sujeito e objeto, entre Lucrécia – a personagem principal – e o mundo, ou, nesse caso, entre sujeito e patrimônio urbano. Uma das possíveis (e das mais potentes) formas de se relacionar com a alteridade patrimonial: vivendo uma experiência que não é sujeito-centrada ao perceber a presença do outro por seus afetos em nossos corpos. E por isso, por localizar a potência germinal desse livro, apostei em desmontar minha leitura no mapa a seguir, pelo desejo de mergulhar nos pormenores da poética clariciana.

lendo Clarice Lispector

Arquivar um processo pode ser uma chance de desvelar as tramas que a criação produz sobre si mesma. Ler o mapa de criação das periferias para o centro pode ser uma forma de recuperar os movimentos da escritura e promover interpretações sobre as gêneses em várias direções. Pode ser ainda um convite para abrir as suas próprias mesas de referências que evidenciam os nós das redes de criação, desenhando os pensamentos que estão sendo criados. O mapa abaixo da leitura de A cidade sitiada (1949) contém minhas intuições sobre o processo ainda pairando ao redor dele, aquilo que me veio a mente quando estudei, os comentários sobre o trajeto de leitura, as conexões que fiz enquanto fruía a obra e, finalmente, aquilo de que duvidei inúmeras vezes.

superfícies escritas

espiando o Centro de Convivência Cultural de Campinas

No dia 7 de janeiro de 2022, eu finalmente voltei ao Centro de Convivência Cultural de Campinas (CCC). Carregada de uma série de imagens e operações de Clarice nos braços, pousei-as no chão, diante do espanto de encontrar o complexo arquitetônico cercado por um tapume. As grades agora apenas indicavam a maior abertura do tapume, para caso um caminhão precisasse descarregar materiais. A novidade da reforma me obrigou a abandonar meus pressupostos, e tentar focar a vista perdida ao desenhar o que me acontecia. Contornei o tapume e desenhei a primeira grande abertura que vi. Mais tarde, ao voltar ao lugar, como não havia tirado foto do evento, o tapume inteiriço fez parecer que eu havia imaginado aquela situação. Descobri frestas menores por onde espiar muito próxima do tapume, pequenos varais onde seria possível pendurar algo (como uma coleção do que os outros perderam pela praça). Descobri um totem com um lambe-lambe de barata (aquela do quarto de Janair) bem em frente à faixa de pedestres que leva ao City bar. Não descobri quem é o artista que espalha desenhos de baratas pelo centro de Campinas, mas pensei que seria um ótimo ponto de encontro para marcar de trocar o objeto oco com os programas performativos anotados em suas superfícies com quem tivesse o interesse de manipulá-lo no espaço do CCC.

   Me sentei diante da porta que imaginei, para ver como fluía a escrita. Quando carregam a parte do tapume que esconde a entrada, vejo só os pés (os quatro) de quem a ergue. Só vejo metade das coisas. O resto das superfícies eu apenas suponho. Aqui os homens têm mãos de lixas orbitais, mãos de espátula, e as peças de tapume têm quatro pés cada uma. Uma relação corpo-máquina-superfície. Lixam a camada mais superficial do edifício, marcada.

   Espiei pelo buraco por onde devem passar a corrente com cadeado e logo alguém me sugeriu por onde entrar. Eu só queria espiar. Os dois trabalhadores com mãos de lixa orbital e corpo de guindaste também notaram que eu estava os espiando para completar meu desenho, pausaram o serviço para me espiar de volta.

No dia 10 de janeiro de 2022, convidei Babi Fontana e José Teixeira para levarem uma cadeira da casa deles para o Centro de Convivência Cultural de Campinas, não sem antes fotografá-la onde costuma ficar cotidianamente. O capítulo “A estátua pública” de A cidade sitiada apresenta uma das travessias mais nítidas de Lucrécia Neves, que num gesto de pedra – como quem olha diretamente para Medusa, semente de Pégaso e Crisaor, já no além-mundo – estranhamente se retorce e desce, como G.H. quando se vê sendo vista pela barata, na direção de uma existência impessoal. A travessia começa pela sala, olhando seus objetos diretamente, até atingir a própria cadeira, elevada acima de si mesma pela falta de função. O campo criado que torna a cadeira oca de função, inabordável,  se estende para além da sala de visitas, para além da porta de casa, para rua, e para a cidade. São Geraldo invade em trote regular a sala de uma casa desperta. Eis, toda a personagem, também incrivelmente física, um dos bibelôs da sala, um dos cavalos que não viam nada para além do subúrbio. Poderia ser transportada para praça pública se vista diariamente com a mesma inconsciência que via, pois é dessa forma que uma estátua (ou um patrimônio) pertence à cidade.

   “Esfregando mais lenta os sapatos, a sonhadora moça examinava com prazer sua fortaleza, não a espreitando mas olhando-a diretamente: preparava-se para estar diante das coisas com lealdade. Insistindo em se pousar como sobre o morro do pasto — assim olhava ela. Nessa moça, que de si sabia pouco mais do que o próprio nome, o esforço de ver era o de se exteriorizar. O pedreiro construindo a casa e sorrindo de orgulho — tudo o que Lucrécia Neves podia conhecer de si mesma estava fora dela: ela via.

   A coragem porém era decidir-se a começar. Enquanto não iniciava, a cidade estava intacta. E bastaria começar a olhar para parti-la em mil pedaços que não saberia juntar depois.

   Era uma paciência de construir e de demolir e de construir de novo e de saber que poderia morrer um dia exatamente quando demolira em vias de erguer.

   No meio de sua ignorância sentia apenas que precisava começar pelas primeiras coisas de São Geraldo — pela sala de visitas — refazendo assim toda a cidade. Plantara mesmo primeira estaca de seu reino olhando: uma cadeira. Ao redor porém continuara o vazio. Nem ela própria podia aproximar-se desse campo criado que uma cadeira tornara inabordável. Nunca pudera ultrapassar a serenidade de uma cadeira e dirigir-se às segundas coisas” (LISPECTOR, 2019, p. 66).   

Quando percebi que a altura do tapume poderia ser superada com a ajuda de uma cadeira, convidei Babi e José, assim como Victor Costa que se prontificou a registrar a ação, para espiarem a reforma do CCC. Espiar faz aparecer o patrimônio, e deixa tanto quem espia quanto o complexo fora de alcance. Espiar se aproxima do modo de olhar de Lucrécia Neves, que entortava a cabeça para ver cada coisa imediatamente. Via as coisas como um cavalo, que por possuir um olho de cada lado da cabeça, só é capaz de espiar as coisas e nunca encará-las de frente. Foi no seu quarto que nasceu uma maneira de olhar sem penetrar demais, a pousar na superfície do que a luz deixa a ver e, imediatamente depois, esquecer a coisa.

 

"E não havia outro modo de conhecer o subúrbio; S. Geraldo era explorável apenas pelo olhar. Também Lucrécia Neves de pé espiava a cidade que de dentro era invisível e que a distância tornava de novo um sonho: ela debruçava-se sem nenhuma individualidade, procurando apenas olhar diretamente as coisas" (Ibid., p. 22).

Ao fim da experiência de espiar, pedi para que cada um registrasse, com o corpo ainda quente, a experiência em um papel A3. A única condição de registro era que não procurassem uma superfície lisa e organizada para realizá-lo, ocupando-se de alguma superfície do próprio lugar (sobre o tapume, sobre o chão de pedra, sobre as veias do banco de madeira). Tanto Babi e José escreveram nas bordas, como que circulando o papel, o que sugere o próprio movimento de espiar ao redor do CCC e faz nascer a necessidade de rotacionar o registro para ler em todas as direções (implicar o corpo para ler). Ambos se encontraram durante o percurso e experimentaram formas de espiar juntos. José cedeu o casaco para apoiarem-se na parte cortante do tapume para não se machucarem. 

 

Todos concordam que, depois de passar muito tempo olhando para a obra, ela se teatraliza (ou vira coreografia, como completa José). Babi comenta que o andaime da entrada principal lhe pareceu um elemento de teatro de animação. O pedreiro que subiu neste andaime tinha o rosto todo empoeirado, branco, como uma máscara de cena. Segundo Victor, o mesmo organizou todas suas ferramentas para começar e nunca, de fato, começou – como se estivesse subordinado eternamente à ação de somente arranjar seus materiais de trabalho. A conversa coletiva ainda marcou a sensação de que, para dentro do tapume, instaurou-se outro tempo. Ouvindo-os, fiquei com a impressão dos tempos distintos e coabitantes de São Geraldo, o cheiro de estrebaria se misturando ao das máquinas do progresso.

José enfatizou que a noção de “cumplicidade” o marcou durante a ação. Foi cúmplice do chão, que garante a estabilidade da cadeira antes de subirmos nela e das árvores em que subiu para espiar a reforma. Os trabalhadores da reforma também construíram uma relação de cumplicidade com o chão, com as máquinas e os equipamentos de segurança ao serem erguidos para os reparos. Todos saíram do chão para realizar suas ações. Constantemente atento ao camburão que estacionou ao lado da entrada principal do CCC na metade de nossa ação, em estado de alerta, José destacou que para espiar para dentro, não podia deixar de espiar para fora.

 

Babi sentiu o tapume como uma borda, membrana de resistência entre o que está dentro e o que está fora. Victor nos espiou criando novas formas de espiar, vivenciando uma camada dupla de espionagem. Ao contrário de nós, com a câmera, teve que se afastar dos tapumes para conseguir espiar (e registrar). Pelos buracos e frestas, a câmera não captava a imagem. Conta que a distância marcou nele uma dimensão de monumentalidade que é possível perceber em seu registro sobre superfície. Teve a sensação de tentar acessar um segredo, algo suspeito. Estava investigando? Por que fecharam todo o complexo e não apenas a entrada de cada volume? Acompanhou um caminhão que entrou pelo portão principal do tapume e que não descarregou nada. Os pedreiros parecem estar lixando sempre o mesmo lugar. Espiou uma porção de não-ações, de tentativas (começo de ações) e desistências. Sensação que se confundiu com a fala de um passante sobre o fato da obra não sair do lugar: “parece que vou morrer e não vou usufruir do espaço”. Se impressionou com a possiblidade de ouvir o tapume, de colar o ouvido bem próximo da superfície, ao ver Babi testando. Babi é um corpo ouvinte que ressoa os sons do tapume.

Ainda no mesmo dia da ação, Victor publicou em seu canal do YouTube uma montagem em vídeo da experiência. É interessante que tenha feito todo o registro por vídeos curtos, como se a ação de espiar exigisse documentos sonoros e vozes aparições. Me surpreende e emociona que a ação tenha causado tamanha reação e implicação artística, essa necessidade urgente de editar o material ainda pelo frescor da sensação, e a memória parcialmente quente. Ao observar o filme, percebo novas possibilidades para minha espiação, era possível subir no encosto da cadeira para ganhar mais altura. Causa certo incômodo o modo como a câmera encara o funcionário que fecha os portões, e que logo em seguida espia pelo buraco da fechadura. 

Eu me dediquei a algumas tentativas de abordar os passantes. Ao homem que se aproximou de mim para que eu ouvisse nitidamente que deveria tomar cuidado para não dar um passo em falso e cair, perguntei se já tinha espiado como a obra estava ficando. Ele me respondeu que não, pois não era isso que procurava. Procurava um bico de assentar pedras portuguesas no chão.

José disse que o alertaram de que a curiosidade matou o gato, mas que logo em seguida os mesmos perguntaram se os funcionários estavam fazendo o serviço direito. Também me perguntaram em que etapa estava a reforma, pois tinham a convicção de que começariam pela afiação e pelo serviço estrutural. Eu respondi que, além disso, estavam lixando as superfícies dos edifícios. Foi o que pude espiar, você quer testemunhar?

 

Quando percebi dois jovens comentando sobre a obra, perguntei se gostariam de espiá-la. Comentaram que ainda estava na fase de limpeza ao ver os funcionários recolhendo os entulhos. Quando o primeiro cedeu a vez de subir na cadeira, desenhou com as mãos no ar um retângulo, a procura de algo de que sentia falta. Eu completei, “falta uma janela?”, como se ele estivesse indicando que faltava uma transparência literal no tapume por onde olhar. Quando encontrou a expressão recalcada, corrigiu: “não, uma planta do projeto de reforma colada no tapume”.

 

Durante a ação, tive a sensação de que a parte encoberta fosse a única que estivesse sendo reparada. Ainda há muito trabalho para ser feito na parte que está visivelmente exposta para quem não se dispôs a espiar. “Ainda vai anos”, disseram.

Imaginamos a mesma multidão que ocuparia a arena em um dia de festa, espiando a reforma.

pousando um objeto oco

Entre o dia que voltei ao Centro de Convivência de Campinas (CCC) para desenhar e a ação de espiar a sua reforma, senti vontade de esculpir sua arquitetura em volumes, sem a precisão das metragens escalonadas das fachadas, apenas deixando que as formas das superfícies e suas relações me afetassem. Eu montei o protótipo no escritório de Naia Pratta, amiga e parceira de mestrado que me cedeu a casa enquanto viajava. Sua mesa de trabalho dá de frente para vários adesivos coloridos fixados na parede, com todas suas descobertas mais urgentes. Muitos com as mesmas dúvidas que as minhas, muitos com o motivo de não nos fazer esquecer que – mesmo diante de tantos fragmentos soltos –, qualquer passo pequeno de elaboração é, sim, bem-vindo.  

No dia 11 de janeiro, ainda em Campinas, Babi Fontana me convidou para ir à Casa de vidro, no Lago do Café, centro multicultural no qual participa de uma residência artística. Na parte da manhã, resolvi ir ao Centro de Convivência por uma última vez, mesmo com muita chuva, carregando os volumes que construí com a intenção de posicioná-los sobre o piso de pedra de diferentes tonalidades da praça, tal como a personagem Carla do conto A bela e a fera, de Clarice, que teve medo diante da ferida aberta de um mendigo, mas deu o grande pulo de sua vida ao corajosamente sentar-se no chão (LISPECTOR, 2016, p. 630). O plano inicial era passar um tempo manipulando aquelas superfícies tendo o chão como apoio (o que ainda pode ser testado). Mesmo que tenha chovido torrencialmente, e que as peças de papel paraná coladas com fita crepe tenham tomado chuva, valeu a pena a visita porque os poucos instantes que fotografei (atrapalhadamente, equilibrando a pasta A3, os volumes e o guarda-chuva) me deram a sensação de que os volumes pousavam na praça.

Como olhar para o CCC pela primeira vez? Espiando-o, como se um objeto oco, feito só de exterioridade, tivesse pousado no centro de Campinas. As pixações e intervenções que fizeram de sua superfície suporte, ao longos desses anos de interdição, realçam a percepção de que o complexo extremo é feito só de casca. Há nisso uma vantagem, a de vê-lo de um só vez e mantê-lo inexplicável, transitório, extremo, pousado.

Depois de pousar os volumes num tablado com tampo de madeira, compartilhei as questões mais latentes de minha pesquisa com Babi. Será que algumas das peças, ainda no formato das fachadas do CCC, poderiam formar um objeto com a lembrança do que foi a maquete e ser usado como mediador ou disparador de ações no espaço da praça? Um objeto relacional oco, com as superfícies escritas de programas performativos que poderiam ser realizados a partir da manipulação do próprio objeto. Uma abstração, ainda. O interessantes é que, ao fazer essas perguntas para Babi, quem eu considero uma grande realizadora – no sentido de praticar as matérias –,  elas pareciam descabidas sem testagem. Não porque ela não acompanhe a abstração, muito pelo contrário, mas porque percebo que a pergunta só gera dúvidas e não uma reação do corpo. Diante dessa constatação, senti, então, vontade de ler o começo do conto O ovo e a galinha de Clarice Lispector em voz alta para Babi. Li os oito primeiros parágrafos até encerrar com a citação abaixo:

 

   “O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele quem pousou. Foi uma coisa que ficou embaixo do ovo. – Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. – Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto. – Será que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. – O que eu não sei do ovo é o que realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito. – A Lua é habitada por ovos.

   O ovo é uma exteriorização. Ter uma casca é dar-se. – O ovo desnuda a cozinha. Faz da mesa um plano inclinado. O ovo expõe. – Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome” (LISPECTOR, 2016, p.52).

Logo depois de ouvir o trecho do conto, Babi teve um impulso como o de medir o peso de cada peça, em gestos que se desdobravam de acordo com cada materialidade: por algumas era possível espiar, outras vestiam o braço. Gravei um vídeo de Babi expondo o desejo de encher um dos modelos de carne, primeiro passando o braço por dentro dele, e logo em seguida fazendo uma concha com uma das mãos como quem segura um bolo de carne moída impessoal para rechear a forma.

Quando terminava de olhar com a pele cada uma das peças, Babi voltava a posicioná-las na relação inicial com as outras. Talvez tenha sido o vislumbre dessa relação que a fez questionar se os edifícios não tinham conexão. Com razão, afinal, eu tinha feito a maquete deixando o recorte da fachada para o encaixe dos degraus que os unem em circunferência, mas fica difícil imaginar (se não vendo uma foto área) que os telhados viram eles mesmos a arquibancada do teatro de arena, e que existe ainda uma ligação subterrânea que pretendia ser um fluxo de circulação que cortava a praça. Babi filmou minha explicação ao apontar o lápis para onde seriam as escadas que dão para a arena, fazendo gestos arquitetonicamente coreografados para explicar minimamente a relação espacial. Legendei alguns de meus gestos, mas também é possível ter outra experiência assistindo o vídeo sem som nenhum: 

De alguma forma, as passagens que eu tentei explicar foram ouvidas por Babi como acessos por onde espiar. Assumo que Babi deve ter sentido vontade de ocupar esses corredores, ao observar que aquela imagem anterior que eu inventara dos trabalhadores que tinham membros de ferramentas e corpo de guincho se sobrepunha a minha visão do corpo da dançarina fundida aos objetos ocos. Carregando a volumetria como se ela mesma fosse um equipamento para elevação e movimentação de carga. Ela própria deu um nome para esse gesto: “deslocamento de paisagem”.

Quanto mais se envolve com a leitura de A cidade sitiada, mais embaralham-se as ambiguidades entre aquilo que se diz sobre a cidade de S. Geraldo e o que se diz sobre Lucrécia Neves. De uma caçada por uma pulseira, fazendo o esforço delicado de olhar apenas as superfícies expostas de seu quarto por onde a perdera, nasce o susto de ver as coisas de novo, de maneira a não penetrá-las demais. 

Esse olhar que nasce de espiar os bibelôs que lhes pertenciam, diferente daquele que se constrói em relação ao sujeito (em que a coisa é tudo aquilo que não é o sujeito, este acima da coisa), espiar constrói o mundo como extensão da pele. Esse olhar outro adere ao corpo-mundo. Quanto mais aderida à cidade, mais o texto radicaliza essa operação de indistinção. Do morro do pasto, Perseu apontava com o dedo a cidade sobre a qual não tirava nenhuma conclusão, e Lucrécia sonhava em “ser vista sobre o morro: como o postal de uma cidade" (LISPECTOR, 2019, p. 40). Como explica Benedito Nunes, “Ao lado de Perseu, Lucrécia Neves será como as ruas, os sobrados, a praça, a Igreja e o Morro do Pasto, um aspecto da paisagem de São Geraldo” (NUNES, 1995, p. 36).

Com medo de desfazer os volumes, é possível notar em vídeo a delicadeza com a qual Babi deslocava os modelos. De fato, eles são feitos de um material bem frágil, com peças de papel paraná das menores gramaturas emendadas com fita crepe. Quando eu brinquei que ela poderia ser mais agressiva com a manipulação, caso achasse necessário, ela recuperou a memória recente de ter participado do projeto “Titus – a experiência”, dramaturgia relacional ativada por correspondência, dirigida por Marcia Nemer Jentzsch. Ao se inscrever, conta Babi, você aceita receber em casa uma série de instruções a serem realizadas e o material necessário para isso. Uma das etapas compreendia seguir um tutorial de como fazer vincos e dobras em um papel, até se dar conta de que estaria montando um origami de tsuru. A grande surpresa foi que, depois de ter achado um lugar para o passarinho pousar no cotidiano da casa, orgulhosa do que fora montado com as próprias mãos, uma das próximas instruções seria destruí-lo. Nas redes sociais do grupo que propôs a ação, é possível encontrar imagens de como cada participante destruiu sua criação. Em troca dessa imagem da extinção enviada para compor o mural, o grupo enviava pelos correios um cartão postal demarcando o fim da experiência dramatúrgica.

É minha intenção enviar para a banca e para quem deseje ler minha dissertação de mestrado, um objeto oco manipulável com instruções de programas performativos a serem realizados no espaço urbano do Centro de Convivência, que pudesse servir inclusive para mudar a forma de interagir com o documento oficial. A descrição da experiência Titus, me fez cogitar a hipótese de que esse bibelô talvez não precise restar intacto em casa como um objeto durável. Desse questionamento, surgiu o desejo espontâneo de convidar Babi para desmontar todos os volumes e, logo em seguida, remonta-los, criando outras e novas formas.

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Eu gostaria que minha dissertação soasse como a dinâmica desse encontro na Casa de vidro. Conversávamos e refletíamos sobre os nossos desejos e sentíamos o impulso-reflexo de realizar algo sobre eles. Conversar, se mover, dar início a uma nova conversa que é também elaboração do movimento anterior e impulso para o próximo, movimento. Eu comecei com a pergunta original em mente sobre como seria ter em mãos peças arranjadas à memória do que tinham sido, e terminei com a mesma questão diante das novas composições. “Tudo no mundo começou com um sim” (LISPECTOR, 2017, p. 47).

desmanchamentos

Chegamos ao Centro de Convivência Cultural de Campinas (CCC) em uma sexta-feira de manhã (06 de maio), eu, meus colegas do grupo de pesquisa, Babi Fontana, Getulio Henrique Rocha Lima e José Teixeira; Erika Cunha, atriz e pesquisadora do Grupo Matula Teatro, com sede no distrito de Barão Geraldo, Campinas; e Sofia Cruz, artista da cena e do corpo formada na graduação em Dança pela Unicamp. Pedi para que Sofia encontrasse o letreiro que identificava a entrada principal do CCC, para nos reunirmos na frente, mas a essa altura da reforma, a fachada já estava em concreto liso, livre de informações. Pedi alguns primeiros minutos para desenhar com eles o nosso espaço de jogo. Então, desenhei no chão da praça com fita crepe, a livre inspiração do que seria a projeção em planta da construção do complexo patrimonial.

A maquete foi posicionada na mesma direção que a edificação. Apontei ao grupo qual volume era a entrada principal, que funcionava com foyer para o maior volume do Teatro, a torre de iluminação, a sala de exposições e o restaurante. Por conta do tapume da reforma, só podíamos ver a metade de cima de cada volume e não o que existia entre eles. Por isso, quis ouvir do grupo se recordavam de memória, ou lembravam de terem visto alguma fotografia, ou se ainda supunham o que existia conectando os volumes.

 

Em um dos registros em vídeo gravado no dia da experiência por Babi, Erika simula com a mão onde reconhece o limite da galeria subterrânea que eu descrevera. Esses pequenos gestos coreográficos dão uma camada subjetiva para lugares que eu nomeava tão genericamente como surgiam no projeto de Fábio Penteado. Aponta para o topo da maquete indicando quando ela e seus amigos viravam a noite no alto da arquibancada, já que na época da adolescência, morava em um pensionato de freiras nas redondezas do CCC que fechava as portas cedo da noite e só reabria quando amanhecia. Ainda como se a maquete inspirasse a localização espacial das lembranças, Erika apontou um banco próximo para contar que foi nele que se sentou para chorar no dia em que não passou no vestibular. Reforçando esse movimento de sobrepor as memórias ao espaço-tempo atual, Erika completou que, curiosamente, naquele mesmo dia em que nos reuníamos, tinha sido aprovada em um concurso que prestou como professora. 

 

Acione as legendas para assistir os dois primeiros vídeos abaixo, ou assista-os sem som reparando apenas nos gestos coreográficos com as mãos em relação à maquete que localizam as memórias espaço-temporalmente. 

Depois dessa conversa guiada, convidei o grupo para desmontarmos a forma original da maquete e deixarmos todas as superfícies restarem no espaço de jogo para dentro da fita. Avisei-os que quando um dos volumes fosse inteiramente desmontado, eu iria substituí-lo por um igual até acabarem as formas construídas idênticas e repetidas que eu trouxe para o encontro dentro de uma caixa de papelão. Como lidávamos com o vento, os objetos, agora planificados, tiveram que ser colados com fita no chão da praça para que não voassem. Alguns dos participantes se apropriaram dessa solução, reforçando exaustivamente a colagem de algumas peças no chão, exagerando em fita crepe pra impedir que se soltassem.

Depois de nos darmos certo tempo para olhar para as formas desmontadas, fiz o convite para que cada um construísse para si mesmo um objeto manipulável com as peças que tínhamos no espaço de jogo, colando-as com fita crepe e arranjando as partes do jeito que quisessem. Fiz questão de dar destaque aos quatro enunciados diferentes de programas performativos que estavam colados nas paredes da maquete desde o início e que agora também restavam ao chão. A forma que cada um desse para seu objeto poderia conter todos os diferentes enunciados, ou sobrar apenas com alguns deles.

Medir as superfícies da cidade com as superfícies do seu corpo.

Espiar as coisas sem nunca encará-las de frente.

Posicionar o objeto no limite de um lugar de sombra.


Encontrar e colecionar o que os outros perderam.

Estabeleci regras simples para jogarem durante uma hora de testagem com os objetos montados. O objeto poderia ser manipulado no complexo do CCC, naquele dia, em casa, e também quando o CCC já tiver sido reformado e for reaberto ao público. E, apesar de nem todos os enunciados conterem explicitamente o objeto, os participantes necessariamente precisariam realizar os programas com ele. Por fim, para reestabelecer a relação com a casa – nessa tentativa de reforçar a continuidade entre o espaço doméstico e a rua presente no livro A cidade sitiada – que o deslocamento de uma cadeira na ação anterior de espiar a reforma do CCC instaurava, determinei a regra de encontrarem um lugar para o objeto em suas casas assim que retornassem, para percebê-lo como um bibelô, nem que por um instante, por mais que fossem descarta-lo em seguida.

No fim do ensaio com Babi na Cada de Vidro em 11 de janeiro de 2022, eu me questionei se os formatos novos dos “bichos” de papel ainda carregariam a memória do formato original, ou seja, a memória em miniatura das fachadas do CCC – dúvida essa que só poderia ser tirada na prática. Acredito que a resposta seja afirmativa, porque a maioria dos participantes sentiu vontade de tirar fotos comparando as linhas do objeto às linhas da edificação do CCC. Foto: Getulio Henrique Rocha Lima, 06/05/22.

Sofia criou um objeto bastante volumoso e posicionou-o na frente dos volumes do CCC, comparando a projeção em altura da torre de iluminação com as faces do seu objeto que se destacavam na mesma direção. Foto: Sofia Cruz, 06/05/22.

Foto: Babi Fontana, 06/05/22.

Foto: Babi Fontana, 06/05/22.

Foto: Getulio Henrique Rocha Lima, 06/05/22.

Foto: Getulio Henrique Rocha Lima, 06/05/22.

Foto: Babi Fontana, 06/05/22.

Foto: Getulio Henrique Rocha Lima, 06/05/22.

Foto: Getulio Henrique Rocha Lima, 06/05/22.

As fotos em zoom se aproximam da porosidade do material. Foto: Getulio Henrique Rocha Lima, 06/05/22.

Encaixes

Encaixes

Outra sensação que se repetiu, especialmente entre os relatos de Sofia e José é essa confusão entre os corpos e suas extensões e o jogo entre suas escalas. Em seu registo, Sofia relata a sensação de como suas axilas se encaixavam no concreto e, por coincidência, José fotografou o que parece ter sido o exato instante dessa experiência que ficou marcada. O corpo pousando feito o objeto que montara. Foto: José Teixeira, 06 de maio de 2022.

Revirar as faces da maquete, que feitas de papel paraná possuíam um lado mais claro aparente e um mais escuro avesso, parece ter causado em José essa sensação de reversibilidade entre o que está dentro e o que está fora, que eu também tentei instigar ao colar enunciados nas superfícies internas da maquete. Foto: José Teixeira, 06/05/22.

O avesso de um enunciado

O avesso de um enunciado

José tirou essa foto que eu considero como um emblema dessas torções, destacando que em seu objeto um dos enunciados colados dobra em si mesmo. O que ilustra tanto o sentido dúbio que eu queria encontrar para eles, e a desorganização – a qual toda ação no espaço público está sujeita – que remontar as estruturas no chão da praça provoca. Foto: José Teixeira, 06/05/22.

Colado nas páginas do diário de José, as perspectivas das faces do objeto construído com as dimensões de suas palavras. Embaralham-se ainda os enunciados de programas performativos que sugeri. Ao virar o objeto do avesso, parece ter se implicado na tentativa de virar do avesso também os seus sentidos, buscando novas possiblidades sensíveis que não encarassem o mundo de frente. Foto: José Teixeira, 10/05/22.

A sombra das facetas do objeto projetada nele mesmo se confunde com uma possível sombra que a grama faria (grama em que Sofia pisara, segundo seu registro). Nessa mesma foto, dá pra ver o cordão rosa que colecionou. Foto: Sofia Cruz, 06/05/22.

Ao realizar o programa de encontrar e colecionar o que os outros perderam, Sofia aderiu ao objeto um cordão rosa de menos de dez centímetros, e uma lantejoula que encontrou reluzindo no limite de sombra de um dos enunciados. Colou a lantejoula, esse minúsculo bibelô, na fita que unia as peças de seu objeto. Foto: Sofia Cruz, 06/05/22.

Babi teve a percepção que dessa vez foi mais difícil espiar a obra, e que as frestas do tapume que conhecia de memória, pareciam ter sido preenchidas desde nossa última ação, dificultando o gesto. Sofia, pelo contrário, como demonstra a grafia do seu registro, parece ter encontrado as frestas que Babi perdeu. Foto: Babi Fontana, 06/05/22.

Limites da sombra produzida pelo mobiliário urbano da praça. Foto: Sofia Cruz, 06/05/22.

Eu vi Sofia encaixando as faces do objeto nas nervuras do tapume e inventando maneiras de deixa-lo fixo em altura enquanto observava e fotografa à distância a composição que tinha criado. Observei ela espiando pelo objeto, e olhando para o céu, na mesma direção em que fotografou o objeto muito próximo da superfície espelhada. Foto: Ju Semeghini, 06/05/22.

"Convite para olhar para cima"

"Convite para olhar para cima"

Objeto-câmera. Luneta por onde espiar. Foto e título: Sofia Cruz, 06/05/22.

Flagrei Sofia prendendo o objeto ao tapume e transformando-o num “convite para olhar para cima”, como escreveu em seu registro. Na foto à direita e acima, é possível notar um pedaço de papel enfiado em um vão do tapume. Seria mesmo uma forma de bloquear a visão, como Babi percebeu? Foto: Babi Fontana, 06/05/22.

Foto: Babi Fontana, 06/05/22.

Erika também sentiu vontade de fixar o objeto no mobiliário urbano ao redor da praça, e voltou ao espaço de jogo, onde estava disponível a fita crepe, para usá-la para fixa-lo em um bicicletário em frente o City bar. Foto: Babi Fontana, 06/05/22.

No limite do próprio lugar de sombra. Foto: Erika Cunha, 06/05/22.

Foto: Getulio Henrique Rocha Lima, 06/05/22.

Foto: Sofia Cruz, 06/05/22.

Foto: Babi Fontana, 14/05/22.

Erika se aproximou do mesmo banco que reconheceu durante a conversa diante da maquete como aquele em que um dia chorara, e usou como pretexto fotografar o objeto pousado nele para dar início a uma conversa com as três pessoas que o ocupavam. Relatando ter questionado um senhor sobre quais eram suas perspectivas para aquela reforma, recebeu como resposta a projeção de que poderiam voltar a sentar no mesmo banco daqui dez anos que a reforma estaria no mesmo lugar. Reforçando a ideia de que ao banco atual se sobrepunha a camada do que fora ontem e do que seria amanhã. Babi contou que, ao conversar com um dos passantes, ouviu a reclamação de que não havia mais ninguém trabalhando na obra, mesmo que na sua frente, em uma das maiores fachadas do CCC (aquela do Teatro), tivessem dois trabalhadores em um andaime tratando a superfície com ferramentas barulhentas. Parece que se instaurou uma sensação generalizada de ausência e esgotamento. 

banco centro de convivência cultural de campinas

O objeto confeccionado por Erika pousado no banco de ontem, hoje e amanhã. Foto: Erika Cunha, 06/05/22.

O senhor abordado lembrou ainda que tiveram que reformar o teatro porque sua infraestrutura precária acabaria dando um curto-circuito em alguém. Erika mesmo já teve que erguer os fios da produção técnica de uma peça para que os alagamentos recorrentes na região não alcançassem a corrente elétrica. No registro de Babi aparece a questão “Você já viu algo aqui no CCC?”. Essa pergunta parece se referir a uma possível abordagem aos caminhantes indagando-os se já assistiram algum evento formal apresentado no teatro. Logo em seguida, no texto em que produzira, Babi responde no gerúndio, “estou vendo”, como se visse algo acontecer como parte dessa experiência perceptiva. 


Logo que Erika se levantou do banco e se afastou do senhor com quem conversara, ele pareceu sentir a necessidade urgente de se aproximar da superfície do tapume. Caminhou até lá, experimentou puxar um pequeno fio preso na estrutura de vedação, perto do qual provavelmente havia uma fresta por onde poderia olhar curioso. Então, com o corpo mais rente possível ao tapume, espiou a reforma do CCC. Com a memória do toque, voltou a olhar a reforma à distância, sentado com os amigos. Estou vendo.

atravessamentos

Quando Babi Fontana viajou para Lisboa, Portugal, para participar do Encontro Internacional sobre a Cidade, o Corpo e o Som entre março e abril de 2022, me enviou algumas fotos da renovação do jardim da Praça do Império. O tapume que cercava a reforma de reabilitação do mobiliário urbano apresentava uma janela para que os curiosos pudessem espreitar o obra. Tenho a sensação de que Babi levou para viajar as forças de ação que moviam o programa performativo "Espiar a reforma" que realizamos juntas no Centro de Convivência Cultural de Campinas no dia 10 de janeiro de 2022.

mostra //corpos sonoros//

Babi Fontana e Victor Costa organizaram a mostra corpos sonoros, que aconteceu um dia após a minha última ação (07 de maio de 2022) e que reuniu diferentes aberturas dos processos que foram experimentados durante o período de residência artística de Babi no museu municipal Casa de Vidro de Campinas. Os dois vídeos que filmamos desmontando a maquete e remontando as faces em novas formas, em sequência, ganharam o título “Rematerializações”, inspirados pela leitura do trecho inicial do conto O ovo e a galinha de Clarice Lispector e o desejo de movimentar operações que atuam em suas escrituras, como a desmontagem da forma, e a tentativa impossível de apreender sua definição. Além disso, montei uma instalação com os rastros da ação do dia 06 de maio no CCC, marcando com fita crepe uma das salas da mostra e posicionando as faces e enunciados no piso da exposição.

Recebi ainda o convite de Babi para movimentar os áudios de artistas da América Latina que coleciona ao lado de Carol Gás, lua-KRIS, e Sofia Cruz, em "Cair", dança-instalação com vozes descrevendo suas quedas. Abaixo, o convite para mostra e o relato completo sobre essa experiência que publiquei na minha página do Facebook.

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Todas as colegas convidadas para dançar as vozes que Babi colecionou sentiram uma vontade urgente de falar sobre o acontecimento assim que terminaram as experiências em sequência, inclusive eu. Quando lembraram do atravessamento de uma criança presente pelas instalações, que quando o viu os fios e os falantes no chão quis logo senti-los com as mãos, eu complementei com a observação sobre como os adultos se sentiam autorizados para jogar quando endereçavam suas descobertas à criança, e como a criança se deixava contaminar pelo ritmo dos pés das bailarinas. Sofia, que esteve presente na ação no CCC no dia anterior, comparou essa necessidade urgente do toque, a aproximação do corpo ao material e a contaminação rítmica (diferente do ritmo cotidiano), ao desejo do senhor que ocupava o banco da narrativa anterior de se encaminhar ao tapume e mapear sua materialidade. Para situar o acontecimento, Sofia teve que encontrar as próprias palavras para descrever o que eu teria proposto diante do patrimônio urbano. De certa forma, as forças da ação ainda pulsavam e se desdobravam.

a defesa ou uma visão panorâmica do percurso

Na minha desmontagem cênica Peça de voltar, eu forrei o chão da sala de papel Kraft me inspirando na coreógrafa e bailarina Trisha Brown. E para apresentação da defesa, eu recuperei um par que André Lepecki (em Exaurir a dança) aproximou pela suas operações antigravitacionais, para construir uma visão panorâmica do percurso do mestrado, María La Ribot, na tentativa de produzir um pequeno ruído arquitetônico na burocrática sala reservada para o encontro com a banca avaliadora. Eu escolhi esse formato de apresentação também porque eu queria que a forma sugerisse para onde as questões do mestrado tem me levado. Com a intenção de pesquisar dispositivos de escrita e novas formas pra escrita acadêmica, sem abrir mão de uma perspectiva arquitetônica em que as ideias rascunhadas nas páginas do doutorado se tornem espaço.

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Referências:

LISPECTOR, Clarice. A bela e a fera ou a ferida grande demais, em Últimas histórias. In: LISPECTOR, Clarice. Todos os contos. Organização de Benjamin Moser. Rio de janeiro: Rocco, 2016. p. 621-632.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela: edição com manuscritos e ensaios inéditos. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.

LISPECTOR, Clarice. A cidade sitiada. Rio de Janeiro: Rocco, 2019.

LISPECTOR, Clarice. O ovo e a galinha. In: LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de janeiro: Rocco, 2020. p. 51-61.

NUNES, Benedito. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Editora Ática S.A., 1995.

Embora A cidade sitiada seja a referência principal com a qual dialogo nesse momento da pesquisa, vários outros contos e romances de Clarice me enchem de vocabulário para comentar suas operações.

agradecimentos

a Getulio Henrique Rocha LimaVictor CostaJosé Teixeira e Sofia Cruz por todas as reverberações que seguiram dividindo comigo depois que as ações em si já tinham terminado.

Erika Cunha, atriz e pesquisadora do Grupo Matula Teatro, por ter dividido comigo suas memórias em relação ao Centro de Convivência de Campinas e sua habilidade de se conectar com pessoas. 

a Naia Pratta, de quem morro de saudade, por me ceder o espaço de sua casa para ser o refúgio de minhas crises e também o lugar a partir de onde criar impulso para. Não vejo a hora de te ver de novo e de espiar também o final de sua pesquisa de mestrado que eu admiro tanto. 

Se durante a desmontagem, eu me reconheci imediatamente na queda da Babi (ainda nos reconhecemos em nossas quedas), durante a fase final de nossos mestrados, percebi mais um lugar onde nos encontramos. Nos agradecimentos que escrevi para ela na página da desmontagem aqui no site, dediquei-lhe uma citação de Clarice, sem saber a proporção que a leitura dessa autora tomaria na minha pesquisa depois do exame de qualificação. As palavras de Clarice chegam em mim primeiro como corpo, assim como as vozes coletivas que Babi coleciona ressoam em seu movimento de ouvido. Obrigada por mais essa escuta, Babi.

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