top of page
postaisenunciados

Todo projeto deixa fios soltos. Da leitura quase obsessiva do romance A cidade sitiada, de Clarice Lispector, durante o mestrado (ver Superfícies escritas) restaram alguns fiapos de tangerina presos nos meus dentes e os caroços que cuspi num beco sujo. As operações do olhar clariciano arranjaram quadros de luz da relação entre Lucrécia Neves e S. Geraldo, à semelhança do retrato do progresso da cidade que a protagonista pendurou no corredor e que espanava todo dia. Cartão-postal do futuro viaduto que a olhava de volta toda vez que parava diante dele. E Lucrécia tinha mesmo esse desejo de andar sozinha como um cão, e ser vista sobre o morro como um postal da cidade. Estou participando de um curso de Poesia expandida, na Casa das Rosas, e esse é o relato que nasce desse começo. Em uma das aulas com Daniel Minchoni, ouvi que a métrica da minha poesia era a métrica da minha vivência, da minha cidade, do meu contexto; e que a estrutura rítmica tem a ver com o território. Lucrécia era a métrica da cidade e eu restei com o desejo de enviar postais sobre seus ritmos. 
 

Uma das primeiras provocações práticas das aulas do Minchoni tomou (e ainda toma) grande espaço em mim. Pediu para que pensássemos em algo que éramos bons na infância, como em alguma brincadeira ou jogo, mas que deixamos de lado para virar adultos sérios e figuras respeitáveis. Acontece que, me permitindo ser íntima, eu sempre fui uma criança séria. Do tipo que confundia ficção com mentira, e que evitava se sujar ou tomar banho de chuva. Mas eu tenho uma foto linda com um sorriso escancarado, embaixo de uma cabana absolutamente primária que um primo montou para mim. Dois almofadões e um colchão fazendo o teto. E, embora minha casa de infância tenha sido muito organizada, eu amava quando a faxineira enfileirava as cadeiras da mesa de jantar porque assim eu podia imaginar outros usos para elas, como estar em vagões de trem ou em vários cômodos. A ideia era usar a forma da brincadeira como recurso estilístico para criar um poema que tivesse a forma de uma cabana. Sem saber por onde começar, resolvi experimentar erguer uma cabana com um lençol de elástico branco cobrindo duas cadeiras da mesa de jantar, no meio da minha sala de estar. Mesmo que as fotos que tirei não fossem ainda o poema em sua forma final, imaginei pinçar delas características que me instigassem a seguir, como os detalhes do caimento da costura do lençol, ou a tensão que precisa ser feita para mantê-lo esticado e menos abaulado, ou ainda a forma como era possível interagir com suas dobras. E, por mais clichê que soe, esses detalhes eram pouco perto do fato d’eu ter aberto mão por algumas horas da ordem rigorosa da minha casa. 
 

Durante um dos nossos encontros, Gabi mostrava um trabalho de interferência em uma página de livro, que foi conduzido por um jogo de dados com regras que a artista estipulou. Resolvi compartilhar meu processo logo em seguida porque, de alguma forma, a desorganização daquele texto se parecia com a bagunça que fiz na minha sala de estar (ou a sala de jantar dessas pessoas que estão ocupadas em nascer e morrer). Mesmo me conhecendo tão pouco, ou quase nada, Minchoni comentou que se estivéssemos reunidos presencialmente, eu não teria hesitado em levar um lençol para o grupo encontrar soluções precárias de montar uma cabana no espaço possível da Casa das Rosas. Ele tinha razão. Então, a gente poderia escrever sob ele, falar poesia através dele, experimentar como seria habitar a cabana em pares ou em coralidade. Disse ainda que há como viver essa persona poética, que escolhe a poesia como forma de enfrentar o mundo, não só pela possibilidade de organizá-lo em forma de poema. Ser quem gera lugares não convencionais por onde passa. Os registros da cabana inauguram a vontade de superar as distâncias físicas entre as telas e enviar cartões postais com a sugestão de reperformar a experiência que vivi em casa.

poesia expandida:
postais enunciados

digitalizar0001.jpg

   As aulas com Minchoni foram bastante desafiadoras e seguem provocando meu dia a dia silencioso e me pedindo por mais leituras em voz alta. Em um dos encontros, deu play em vários vídeos enquanto devíamos escrever reagindo aos ritmos das sonoridades. Na tentativa de fazer minha mão responder aos estímulos, eu tentava repetir os sons em voz alta, tentando operar algum tipo de tradução para o que parecia ser um abismo intransponível. Para lidar com as frustações dos rabiscos que ficaram no meu caderno, eu fiz esse desenho de minha sensação na beira da página pautada, e agora, passo a limpo:

Eu deveria ocupar um quarto inteiro, ter à disposição todas as superfícies das paredes e o chão para reproduzir o ritmo dos vídeos espacialmente, em todas as direções, e conceber o poema depois de ter dançado seus sons. Entre outros enfrentamentos, estava também o pedido para que tentássemos sonorizar um de nossos poemas. Mas que poema? Agrupei todos os enunciados de programas performativos que já inventara e que convidara o outro para experimentar, para encarar esse meu corpo de poemas, essa minha pequena coleção. O que muda na voz quando se faz um convite?
 

Outro exercício proposto por Minchoni foi a tradução de um dos pares da Sintaxe da Linguagem Visual (livro de Donis A. Dondis, 1973) para uma sonoridade. Fui provocada a fazer essa experimentação porque minha formação me fez dominar as leituras visuais, então talvez pudesse formular uma questão de pesquisa dque fosse mais palpável aos meus sentidos. Escolhi o binômio transparência/opacidade, definidos respectivamente por uma composição na qual aquilo que está por trás também é revelado, e o ocultamento de elementos. Então, lembrei dessa passagem de minha leitura de As meninas de Lygia Fagundes Telles:

 

Atenderam. Ninguém na janela para me chamar? Ninguém. "Perdão, foi engano", disse a voz opaca, toda voz de engano fica opaca. Imagine se Lião escrevesse nesse tom assim opaco. Tão nítida. Nítida demais, os entendidos querem opacidade na linguagem, uma certa névoa confundindo sutilmente a silhueta das palavras. Biombos nas entrelinhas guarnecendo (amo essa palavra, guarnecendo) o mistério das letras. E as letras sem mistério em pleno coito com o Demônio. Há orgasmo? O Demônio vai e vem por linhas tortas, trançando os cabelos das amadas em nós indeslindáveis. E quem vai trançar o meu cabelo? Ai meu pai. Disse que rasgou tudo. Melhor assim, coitadinha. Ninguém mais vai ler que em dezembro a cidade inteira cheira a pêssego. (TELLES, 2009, p. 103-104, grifos da autora). 

Toda voz de engano fica opaca. Ao contrário da voz que Lia tenta encontrar como romancista, nítida demais, o engano ergue biombos nas entrelinhas. Pensei em dar início a uma coleção de enganos, e vozes que afirmam suas certezas de forma transparente porque deixam escutar os ruídos dos enganos do plano de fundo, ao enviar postais para que os colegas de turma me respondessem.


 

ReferênciaTELLES, Lygia Fagundes. As meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Ju Semeghini
00:00 / 00:13
Daniel Minchoni
00:00 / 00:41

   Caso queira receber um postal na sua casa, você pode me enviar seu pedido e endereço por e-mail (jursemeghini@gmail.com) ou me mandar um direct pelo Instagram (@jusemeghini)!

dorso

No fim do módulo do curso de Poesia expandida na Casa das Rosas em 2023, tivemos aula com Anderson Gomes que, logo de partida, nos aconselhou a criar um banco de letras. Todos os exercícios que Anderson propôs tinham uma dimensão entre o que se aprende e a disposição para testagem. Ou seja, o gestos de coletar letras é uma provocação que não se encerra de um dia para o outro, como uma tarefa a ser cumprida. É um comprometimento contínuo com o ato de investigar. E é exatamente por isso que as aulas com esse professor reverberam tanto nas minhas próprias práticas pedagógicas. O curso de poesia era online com muitos membros, e publicávamos nossas experimentações no Google Sala de Aula. Era difícil se conectar com alguém no encontro da aula em si, mas tenho certeza que me interessei pela pesquisa de Enrique Aue justamente por causa de sua abertura para o processo ou para o movimento. 


Nos primeiros exercícios de composição, Anderson propôs que a ordenação das formas no espaço produzissem sentido, sem o apoio do significado semântico das palavras. Me interessei pelas palavras disparadoras que continham verbos de ação, assim meu corpo poderia coreografar as tentativas ao invés de racionalizá-las. Em busca de “atividade”, ergui as formas planas pelas beiradas. A partir da chave da “espontaneidade”, restei com a indecisão de colar ou não as formas do papel, e optei por recolhe-las. 

dorso

O exercício do segundo dia Anderson chamou de “caligrafia selvagem”, que ao ser resumido por escrito, começava com a advertência de que era um exercício experimental e sua validade dependia justamente da insistência nos desdobramentos. Acho que tanto eu quanto Enrique ficamos deslumbrados com as possibilidades dessa aula. 

Devíamos escolher uma palavra e grafá-la de modo a intensificar em sua forma gráfica seu conteúdo virtual, seu significado. Foi quando Enrique Aue publicou na nossa plataforma coletiva suas experimentações em torno de versos que ecoavam em sua cabeça. No meio do verbo “alcançar”, percebeu que o laço do L poderia se projetar infinitamente em devir de alcançar-se a si. Eu amo essa obra justamente porque parece que o gesto extrapola a borda, pode lançar o L, coreografar uma vida de encontros e depois reencontrar o impulso de onde partiu. Hoje, tenho ela exposta em casa porque trocamos nossas obras por correspondência.

 

Já eu, fiquei muito impressionada com uma imagem que foi compartilhada bem rapidamente durante a aula e com a legenda que Anderson havia dado para ela: as ferramentas do artista Hans Hartung, em “pena de poeta”. A ideia de que os instrumentos para caligrafia poderiam ser inventados tal como a escrita, ou que poderiam inventar uma nova escrita capturou meu interesse. A partir da imagem de um gesto de doação que grudou na minha retina, imaginei a possibilidade de caligrafar com o dorso da mão. Criar uma ferramenta para o dorso de toda parte do corpo, para a zona das vértebras dorsais, para o dorso da língua e da página. Outra palavra que se desdobrou dessa e que também me deu vontade de experimentar foi "colo". Essa parte superior do peito, o refúgio de afeto, a parte estreita de algumas cavidades (colo do útero) e também aquilo que coincide com o acidente geográfico dos passos das montanhas. Talvez essas duas palavras tenham surgido das minhas práticas iniciantes de balé, em que se pensa ativamente sobre o colo de pé e sua altura, que ao ser definido por sua concavidade, se aproxima da ideia de dorso. Em vídeo que Anderson nos apresentou, o artista japonês Hamano Ryuho comenta que gostava de escrever e apreciava temas geográficos. Essa escrita caligráfica tem mesmo a ver com essa noção topológica do mundo, de um topos equivalente ao lugar que o corpo e suas relações ocupam territorialmente.

 

Depois das primeiras testagens sozinha, entendi que dorso era um convite. Construí ainda mais ferramentas, e convidei a amiga que estava justamente me dando as aulas de balé para testarmos o dorso da caligrafia juntas. Criei um pincel para o dorso das mãos, dos pés e uma faixa larga que quando amarrada na cintura fazia o pincel coincidir com a ossatura de cada vértebra. Eu lembro muito bem que quando eu e Janina Arnaud vestimos essas ferramentas improvisada no corpo, demos risada da precariedade com que foram construídas. Depois do tempo de testagem, conversamos sobre a experiência e a primeira coisa que fiz foi agradecê-la por não desistir de gastar as primeiras chaves. Juntas, sentimos o pincel como extensão da pele. Às vezes, como diante de um abismo, era preciso ter um ato de fé de que a ponta do pincel encostava mesmo na folha, porque a sensibilidade das costas não permitia ter certeza e nos privava de visão. Foi como se, num exercício meyerholdiano, toda a energia do nosso corpo estivesse na ponta do pincel. Perdíamos um pouco tanto a noção de composição, como  dos limites das folhas, e por isso logo imaginamos a possibilidade de extrapolá-las em um ambiente inteiro feito para o traço. A única preocupação que restava era com o contato. Eu, sem tanta agilidade, senti muita dor no corpo de sustentar as costas em paralelo ao chão. Sempre que doía, em estado performativo, eu tentava transformar o desejo de desistência que surgia da frustração, em uma decisão que espalhava o nanquim da forma que meu corpo era capaz, negociando sua acomodação com sua vontade de caligrafar.  

v

V

Anderson Gomes me apresentou a obra radical de Joan Brossa, Cabeça de boi (Catalunha, 1969), como uma virada histórica. Enquanto pensávamos na possibilidade de fazer um poema com uma letra só, virar o “A” de cabeça para baixo era uma inversão ontológica. O mesmo “A” invertido virou um monumento público na Espanha, onde o touro é símbolo. É no exato momento em que a poesia de uma letra só projeta sua sombra no chão que se torna monumento. A sombra da letra aspira ser monumento. Então, enquanto eu pensava com que letra única eu habitaria o espaço urbano, Enrique Aue publicou no Google Sala de Aula uma fotografia de um V recortado em estêncil, que emoldurava uma paisagem cheia de plantas. Ele tinha a letra perfeita que mesmo solitária é conjugação do verbo ver. Foi por isso que propus a ele que cortássemos um "V" em madeira e levássemos para fotografar em relação às esquinas da cidade. Expandimos o convite para turma inteira, na tentativa de conhecer em carne e osso aqueles que moravam em São Paulo. 

Estávamos eu, Daniel Minchoni, Rodrigo Petrucelli, Enrique Aue, e no ponto final nos encontramos com Anderson Gomes, o poeta que disparou a provocação inaugural. Assim que chegamos no Vão do Masp, eu me senti um pouco envergonhada de propor uma ação artística em um lugar com tanta violência policial, parecia um gesto mesquinho. Com a ajuda e a motivação do grupo, bem como Enrique escreveu em um depoimento sobre a experiência, criamos coragem para escrevermos (aquele dia) juntos. E a atenção foi sendo construída enquanto caminhávamos. Seguem os materiais mais potentes que produzimos juntos naquele dia:

caligrafar com um braço impossível 

Coincidindo com as comemorações do aniversário do museu em dezembro de 2023, a turma do curso de Poesia Expandida preparou um vídeo para exibir as nossas produções entrecruzadas no jardim da Casa das Rosas. Para a mostra, Enrique preparou um vídeo que embaralhava o desejo inaugural de alcançar com as experimentações de dorso, celebrando nossas cartas trocadas escritas à mão. O vídeo completo exibido na mostra foi publicado no Canal do YouTube da Casa das Rosas.

agradecimentos

No dia 23 de outubro de 2022, um sábado de manhã, fui a um sarau na Casa das Rosas para homenagear a poeta Bruna Mitrano, que passava por um momento difícil de saúde. Suas alunas do curso de preparação para escritores (CLIPE Poesia) organizaram a celebração ao ar livre e montaram uma mesinha com seus próprios livros, alguns recém-lançados, para que parte das vendas fosse revertida para os custos médicos. Uma amiga que me dá aulas de dança, a Janina Arnaud, me convidou para ir, e foi dessa forma que eu ouvi as palavras da poeta pela primeira vez. Um cantinho com um microfone aberto e algumas cadeiras de plástico, perto do orquidário, que deve ter escoado em verso pela avenida paulista inteira. Eu não fui capaz de desgrudar do grupo pela tarde toda porque a inspiração de todas juntas fazia vibrar a minha. Que jeito mais potente de se conhecer tantas vozes autorais. Na mesa do almoço, que virou mesa da sobremesa, de bar, de fome da noite, eu perguntei sobre o curso de escrita que faziam, e sobre como era a seleção, já pensando em me inscrever. Depois de me esclarecerem as partes burocráticas do processo, de me mostrarem as pastas com as inspirações que as professoras organizavam, e os seus mais recentes poemas pedindo para que eu lhes entregasse minha leitura possível sobre eles... Minha amiga disse que o mais incrível que tinha encontrado naquele grupo era a vontade genuína de lerem umas às outras. Eu me inscrevi no curso de Poesia Expandida e por acaso, Bruna Mitrano também estava na turma. Conheci sua voz sendo experimentada por outras mulheres que a admiram muito, e tive o privilégio de ouvi-la nas suas tentativas tímidas, como ela mesmo descreveu, durante as aulas com Daniel Minchoni, que aprofundaram camadas da dimensão de falar poesia

Obrigada, Anderson Gomes, por nos dar devolutivas tão sensíveis a cada passo do processo e por inspirar minha prática pedagógica. Certa vez, ele perguntou para turma quem mais escrevia à mão, além de mim, memória que ampliou minha certeza de ser vista pela autoria dos meus gestos. Obrigada, Enrique Aue, por ser esse realizador que eu admiro tanto e por ter tirado do papel junto comigo o desejo de alcançar. Suas produções na #editorabarata me inspiram e até mesmo conversar com você é ato poético.

bottom of page